terça-feira, 4 de março de 2014

''Ratio Studiorum'' dos Jesuítas

Margarida Miranda, professora do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra traduziu a Ratio Studiorum, o plano de estudos seguido pelos Jesuítas e cujo grande mentor foi Santo Inácio de Loyola, cujo lançamento foi no passado dia 15 de Janeiro. O De Rerum Natura falou com ela a este propósito.

P: Em concreto, o que é a Ratio Studiorum dos Jesuítas?

R: Ratio Studiorum é o nome abreviado de Ratio atque Institutio Studiorum Societatis Iesu, o plano educacional que a Companhia de Jesus pôs à frente dos seus colégios nas mais variadas partes do globo (da Europa à Ásia, do Japão ao Brasil). Embora vulgarmente se traduza por código, ou método, a Ratio Studiorum é mais do que o plano de estudos, ou o curriculum escolar, ou o regulamento dos colégios dos jesuítas. Ela é na verdade o regime escolar (e, nessa medida, também o plano de estudos, o código e o regulamento) que presidiu ao ensino nos colégios dos Jesuítas, desde que foi composto (no final do séc. XVI) até à extinção da Companhia de Jesus, em 1773 (com as necessárias adaptações, claro).

O documento reparte-se em 30 capítulos. Cada um deles consiste num conjunto de regras para cada uma das funções dos membros de um colégio, docentes e discentes, a começar pelo Provincial da Ordem, logo seguido dos reitores (autoridade máxima dos colégios), continuando nos diversos professores e a terminar nas classes iniciais do colégio. Por isso, cada capítulo se intitula “Regras para o professor de …”, ou "Regras para os alunos de …”. Depois, temos ainda “Normas para os exames escritos”, “Normas para os prémios [escolares]”, “Normas para as Academias” – uma espécie de clubes em que a actividade escolar e a produção literária eram estimuladas como recreio e fonte de lazer.

Trata-se, portanto, de um documento que inaugurou uma nova era na institucionalização da educação escolar e que, por isso, acabou por ser seguido também por outras ordens religiosas, que começaram a dedicar-se ao ensino.

P: Há quem defenda que a Ratio Studiorum é uma das obras pedagógicas mais importantes de toda a história da educação ocidental. Rómulo de Carvalho designa-a por monumento. É dessa opinião?

R: Podemos medir a sua importância pelo êxito evidente que acompanhou o ensino dos colégios. Ao longo da sua longa actividade escolar e através da mobilidade real do seu corpo docente, os Jesuítas foram, na verdade, ‘mestres da Europa’. A verdade é que a Ratio Studiorum criou um novo estilo internacional de educar, com um ensino escolar gratuito, dirigido a todas as classes sociais – não apenas a clérigos, mas também a leigos – numa época em que se vivia uma verdadeira explosão da procura escolar na Europa, após a invenção da imprensa.
Além disso, o plano de estudos que ela propunha, gozava da adequação ao consenso comum da Europa do seu tempo: aliava as letras humanas e as artes liberais (isto é próprias do homem livre) à importância da formação do carácter. Com as letras humanas vinha todo o património literário e filosófico greco-romano que o Humanismo e o Renascimento ensinavam a valorizar integralmente. E com aquele património vinha ainda o ideal da eloquência, do domínio da palavra, que é como quem diz, da comunicação verbal! Era num tempo em que formar bons oradores não era produzir discursos bonitos mas homens sábios, capazes de comunicar ao mundo, sem powerpoints mas de forma agradável, o seu muito saber e o seu muito saber pensar, argumentar e criticar. E, ainda, formar alunos para o serviço do bem comum, por meio da intervenção cívica. Essa é uma das características que mais nos separa deste modelo de educação: o primado da palavra (pensada, falada e escrita) e a eleição clara de valores éticos.

O que vejo neste ‘monumento pedagógico’ é a incorporação de diversos componentes educativos já em vigência, num mesmo programa educacional, o que é extremamente claro. Nem todos são de criação jesuítica, naturalmente, mas a sua originalidade está na feliz articulação de todos eles de forma tão sistemática.

P: Quando exploramos a construção da Ratio Studiorum não podemos deixar de ficar admirados com o tempo que demorou, os ensaios que implicou, as revisões a que obrigou… Por isso, a coerência é apontada como uma das suas características mais marcantes. Tendo um conhecimento tão profundo da obra, corrobora esta ideia?

R: É bem verdade! A Ratio resulta de cerca de meio século de ensaios, correcções, melhoramentos, novos ensaios, novas versões… Nada há transformado em “regra” universal que não tenha sido primeiro ‘universalmente’ testado para depois ser submetido à crítica de todos os agentes e finalmente aprovado em forma de letra. É claro que não se pode impor efectivamente uma reforma, sem a cooperação de todos os agentes nela envolvidos. Ora, a implementação da Ratio Studiorum era uma ampla reforma, a maior de sempre, ou melhor, uma grande acto fundacional, sem precedentes, destinado a numerosas instituições escolares, situadas em ambientes muito diferentes, que haviam de perdurar durante séculos. Por isso, tudo tinha que nascer de forma prudente e amadurecida.

Aliás, se a Ratio Studiorum operava sobre uma rede escolar muito vasta, com uma única cabeça, com circulação efectiva de informação e com documentos normativos, ela não esquecia de modo algum a necessidade de adequação aos tempos e aos lugares. É uma ideia muito comum ao longo do texto, responsável certamente pela sua exequibilidade.

Mas isso não desmente a sua preocupação pelo rigor e pela ordem: ordem nas matérias, ordem na divisão dos alunos, cada classe com seu mestre e com seu grau de exigência, ordem na progressão entre classes, ordem nos graus de dificuldade a percorrer, de acordo com objectivos de aprendizagem sempre muito claros, sem preconceitos contra uma clara hierarquia de saberes e de funções escolares.

P: Estudiosos da pedagogia inaciana (por exemplo, José Lopes, padre jesuíta que se doutorou na área) identificam nela as ideias essenciais do Movimento da Educação Nova, que emergiu em finais do século XIX. Porém, Santo Inácio não se considera um original, reconhecendo a sua inspiração em escolas que conheceu de perto, nomeadamente da Universidade de Paris. Podemos dizer que se trata de uma obra pedagógica de transição entre o mundo medieval e o renascentista?

R: Como disse há pouco, a Ratio incorpora, num mesmo programa, métodos e práticas escolares que já vigoravam, embora de forma fragmentada. Nalgumas regiões, a sua obra consistiu num enorme desenvolvimento dessas práticas. Noutras foi um fenómeno extremamente inovador porque não havia alternativas. Experiência modeladora das opções pedagógicas e didácticas da Ratio foi sem dúvida a experiência colhida na Universidade de Paris (a qual, por sua vez, já dava continuidade às escolas dos Irmãos da Vida Comum), mas também a passagem de alguns jesuítas pelo Colégio Trilingue de Alcalá de Henares, cuja Universidade era um dos grandes centros de irradiação do Humanismo na Península. Mas acima de tudo isso está uma outra realidade: é que, em toda a parte, a Companhia de Jesus vivia uma atmosfera intelectual que assimilava a cultura eclesiástica tradicional com um elevado sentido de cooperação com a cultura contemporânea. Os colégios não eram apenas instituições escolares. Eram lugares de grande importância cívica. Bibliotecas, lugares de produção, impressão e edição de livros, observatórios astronómicos, museus, laboratórios, salas de teatro, de música e de dança, de exposição de pinturas e composições literárias… No final do séc. XVI, o programa jesuítico sustentava a compatibilidade entre a educação ‘humanística’, por um lado, e a filosofia ou ciência aristotélica e a teologia de S. Tomás, por outro, numa mundividência que atravessava uma linha de continuidade de muitos séculos. Essa verdade torna as categorias ‘medieval’ e ‘renascentista’ momentaneamente arbitrárias.

O certo é que as tradicionais classes para o estudo da gramática, humanidades e retórica acabaram por se converter no principal modelo dos nossos estudos secundários e por estar na origem do ensino secundário público.

P: Termino perguntando-lhe se a Ratio Studiorum tem sentido no presente e se tem futuro?

R: A essa pergunta, só posso dar a minha resposta pessoal e não a resposta da especialista em ciências da educação, que não sou. É claro que Ratio Studiorum que agora faz sentido (no presente e no futuro) não é a reprodução cega do modelo de 1599, mas a produção de um modelo que respeite os mesmos princípios orientadores: educação para a excelência; apropriação activa de conteúdos e de competências através do exercício constante por parte do aluno; educação humanística que não descure o primado da palavra e da capacidade de pensar; formação humana integral (formação intelectual, humanística e interdisciplinar mas também artística e espiritual); integração dos saberes, que fomente a aliança entre as humanidades e as ciências como saberes complementares e possa superar a actual tendência para a fragmentação dos saberes; saber humanístico que respeite o lugar do legado clássico na nossa identidade e o primado da dignidade da pessoa humana; clareza de valores éticos, já que a educação integral passa pela educação do indivíduo para a autêntica liberdade e responsabilidade, de modo a fazê-lo despertar para os valores da justiça e do serviço, para a consciência social (local e universal) e para a cooperação cívica. E, finalmente, outra questão de extrema actualidade: a noção de que os professores devem conhecer os seus discípulos individualmente e tomar consciência de que os influenciam mais pelo exemplo do que pela palavra; mas sobretudo uma elevada consciência da importância que tem motivar e preparar esses professores, trazê-los satisfeitos e atender os seus pedidos, por serem eles os factores cruciais do êxito escolar.